|
A CABINDA E
OS CABINDAS NO RIO GRANDE DO SUL
Por Vinicius de Aganju
(Doutor em História/UFRGS)
Nos últimos dias se desenrolou
um debate sobre a existência ou não de africanos
identificados como “cabindas" no Rio Grande do
Sul, pois, segundo afirmação de Erick Wolff
(https://olorun.com.br/site1/index.php),
a região de Cabinda na África teria sido oficialmente
criada, com este designação, apenas no século
XX. E dessa forma não poderíamos ter tido africanos
“cabindas" por aqui, já que o tráfico
escravista para o Brasil findou em 1850 e a citada região
inexistiria neste momento.
Escrevo estas linhas com o objetivo de contribuir para o debate
a partir da apresentação de algumas poucas referências
a documentos históricos do escravismo no estado. Digo
poucas referências não porque elas sejam raras,
mas justamente por serem abundantes os documentos históricos
que registram africanos “cabindas” no Rio Grande
do Sul, desde as origens da ocupação portuguesa
no século XVIII. Existem dezenas de artigos, livros,
teses e dissertações de pesquisadores que se
debruçaram sobre documentação nos arquivos
históricos. É algo a muito tempo conhecido e
consensuado: a formação cultural do Rio Grande
do Sul (e de todo o Brasil) contou com a contribuição
dos africanos bantos (oriundos da África Central Atlântica,
atuais Congo, Angola e entornos) identificados não
só como cabindas, mas também como congos, mongombes,
monjolos, anjicos, benguelas, angolas, ambacas, cambambe,
cassange, etc. Além dos homens e mulheres originários
da África Ocidental, berço da cultura dos orixás:
os minas, os jejes, os ijexás, os haussás, os
nagôs, etc. E aqueles da África Oriental: moçambiques,
inhambanes, etc (Russel-Wood, 2001, p.13-14; Moreira e Tassoni,
2007).
Se temos ou não elementos banto no Batuque de Nação
do RS é uma discussão mais complexa e em aberto,
sobre a qual muito já foi dito, mas foge do foco desta
pequena reflexão que proponho por ora. Meu objetivo
não é adentrar a questão interna aos
fundamentos desta nação, até porque não
sou feito nela e não vivenciei suas especificidades.
Busco apenas evidenciar a presença dos cabinas enquanto
grupo. A ampla produção da Historiografia da
Escravidão e da Liberdade no Brasil evidencia que africanos
procedentes da região de Cabinda estava por aqui desde
nosso período colonial, e assim era reconhecido pelos
documentos oficiais do comércio escravista e pelo estado
brasileiro.
Quanto ao Rio Grande do Sul, sugiro a leitura da dissertação
de mestrado do historiador Gabriel Berute, em que analisa
o tráfico de escravizados para o estado nos primórdios
da ocupação portuguesa (1790 a 1825). O autor
evidencia o destaque numérico dos africanos identificados
como cabinas entre os que chegavam para ser vendidos no RS.
Em seu texto existem diversas indicações de
leituras que embasam o o que afirmo neste e no parágrafo
anterior (Berute, 2006, p. 73 - acesso no link: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/10917).
O Arquivo Público do Estado do RS (APERS) disponibilizou
gratuitamente, em pdf, diversas publicações
com resumos de documentos históricos da escravidão
no estado, onde é possível verificar as identificações
de origem dos africanos que aqui viviam (documentos de registro
de compra e venda de escravos, cartas de alforria, inventários
e processos criminais em que aparecem escravizados, testamentos).
Estes documentos podem ser acessados nos seguintes links:
https://www.apers.rs.gov.br/acervo-judiciario
- e - https://www.apers.rs.gov.br/acervo-tabelionatos
Verbetes sobre as cartas de alforria de Porto Alegre encontram-se
igualmente publicadas na obra de Moreira e Tassoni (2007).
Entre os trabalhadores escravizados citados nestas obras estão,
por exemplo, o cabinda João, que em 1806 tinha cerca
de 40 anos e residia em Pelotas, sendo escravizado de Luiz
Pereira. E Ventura, que em 1785 vivia em Porto Alegre e tinha
cerca de 30 anos, identificado como sendo cabinda (Fonte:
APERS. Documentos da escravidão - inventários:
o escravo deixado como herança. Porto Alegre: CORAG,
2010. Volume I, p. 24 e 38 - acesso disponível nos
links disponibilizados acima).
Como já referi, existem dezenas de publicações
que reforçam e embasam o argumento que venho expondo.
Não vou citá-los pois a lista é longa.
Sugiro a leitura deste guia bibliográfico, com longas
listagens de obras que podem ser buscadas e lidas: XAVIER,
Regina. C. Lima. História da escravidão e da
liberdade no Brasil meridional: guia bibliográfico.
Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007. v. 1. 392p .
“Cabinda" é o termo pelo qual passou a ser
denominado, pelos dominadores portugueses, um dos tantos grupos
étnico-culturais da África Central Atlântica,
região de cultura banto que atualmente corresponde
às regiões de Angola, Congo e seus entornos.
Como o Pai Fabiano de Oxalá já demonstrou em
sua página no Facebook (com base no livro de Martins,
1972) o termo cabinda para se referir a uma região
na África não é uma denominação
surgida no século XIX, muito menos no século
XX. Longe, disso, já era utilizada desde o século
XVIII (em 1783/4 foi construída a fortaleza portuguesa
de Santa Maria de Cabinda, no antigo porto de Tchioua, no
Ngoio, conforme pesquisa de Müller, p. 87)
O fato da atual província de Cabinda, em Angola, ter
sido formalmente denominada por este nome apenas em 1956 não
é suficiente para supor que antes disso o termo não
fosse utilizado na África e nas Américas como
denominação de um grupo cultural, como uma região
na África ou recorte político-cultural. E insistir
neste raciocínio, descartando a possibilidade de nossa
ancestralidade batuqueira possa ter - ainda que hipoteticamente
- de alguma forma bebido da herança da cultura banto
(ou do grupo étnico dos cabindas) é, no mínimo,
superficial.
Supor ainda que a cultura afro-brasileira teria se formado
independentemente da existência dos povos oriundos da
região de Cabinda, como afirmado por Erick Wolf no
resumo de seu artigo lançado em fevereiro de 2022 (Revista
Olorum, n. 89) não encontra embasamento nenhum na historiografia
sobre a formação do Brasil, país que
recebeu mais de 4 milhões de africanos escravizados,
muitos deles chamados de cabindas.
Obras consultadas:
BERUTE, Gabriel Santos. Dos escravos que partem para os portos
do sul: características do tráfico negreiro
do Rio Grande de São Pedro do Sul, c. 1790- c. 1825.
Dissertação (Mestrado em História) Porto
Alegre: UFRGS, 2006.
MARTINS, Joaquim. Cabindas: histórias, crenças,
usos e costumes. Comissão de Turismo da Câmara
Municipal de Cabinda. Angola, 1972.
MOREIRA, Paulo R. Staudt; TASSONI, Tatiani de Souza. Que com
seu trabalho nos sustenta: as cartas de alforria de Porto
Alegre (1748-1888). Porto Alegre: EST Edições,
2007.
MÜLLER, Paulo Ricardo. Historicidade, pós-colonialidade
e dinâmicas das tradiCòes: Etnografia e mediações
do conhecimento em Cabinda, Angola. Tese (doutorado em Antropologia
Social/UFRGS), 2015.
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Através de um prisma africano:
uma nova abordagem ao estudo da diáspora africana no
Brasil colonial. Revista Tempo (UFRJ), vol. 6, n. 12, 2001.
|
|